BANDEIRANTES OU
CANGACEIROS NAS TERRAS DO QUILOMBO
Na volta das férias pouca
coisa mudara, a parte de traz do pavilhão, estava agora coberta com telhas de
amianto, o frio ia diminuindo aos poucos e o trabalho recomeçando, de novo nos
pés da amoreira, que agora estava praticamente sem folhas, cheias de casulos
que em breve anunciariam a primavera colorindo de borboletas, pássaros e flores os campos. Sendo praticamente os mesmos, já se sabia quem era quem, se
confiável, se cagueta, se fraco, se raçudo, com isso as amizades se
fortaleciam. Os fins de semanas sem passeio ou visitas eram de muito futebol no
nosso campinho e intensas brincadeiras. Os seriados de TV e principalmente os filmes na telona sábado à
noite serviam de inspiração para o lazer, eram criados brinquedos e armas
improvisadas com tudo que se apresentasse. No barranco atrás da trave do lado esquerdo
do campo havia uma mini cidade, casas, caminhos, prédios tudo escavado no barro
e com cacos de vidro servindo de vitrine num zoológico de bichos e insetos, da
mata, cabanas, com direito a rede do resto de tapetes, armadilhas com cipós,
arapucas, lanças, arcos e flechas, tendo como alvo as bananeiras. As
brincadeiras preferidas e que geralmente envolviam quase todos e de alguma
forma fortaleciam ainda mais as amizades eram de guerra, policia e ladrão e
bate lata, todas eram motivo pra se desvendar
a mata. No bate lata jogava-se uma pra
cima e todos corriam pra mata e arredores pra se esconder, um ficava e tinha
que achar os demais, se alguém chegasse ao meio do campo salvava os pegos. Quem
batia a lata passava a impressão de que todos estavam por perto iludindo o
feitor. Era a hora de se embrenhar na mata e em pequenos grupos sair do EDD
quase que foragidos, poderíamos ser confundidos com um bando de guerrilheiros
até cangaceiros se a idade da tropa fosse maior e as imitações de revolver,
metralhadoras, pistolas, espadas, facas e outras armas fossem convincentes, de longe até enganava, de
verdade só algum canivete ou faca improvisada, tudo escondido a sete chaves e que
poucos possuíam, era um dos sonhos de consumo, possuir um canivete multi uso ou
uma faca boa. Toda á mata e arredores foi visitada por nós, no inicio íamos só
até a bica que ficava um pouco abaixo do cenáculo onde corríamos pelos ainda
poucos morros de barro vermelho, por lá só uma rua com cerca de 12 casas e outras nos arredores, só ela e a
rodovia, passarela de Marcopolos modernos lembrava a civilização era quase um quilombo, os moradores
sempre se assustavam mesmo com a nossa passagem ao longe, creio que apesar da
barreira que a mata fazia todos sabiam da existência do EDD e com as deturpadas
informações sobre nós, tidos como maus elementos e menores infratores sempre
causava apreensão. Chegamos a cruzar a rodovia e em linha reta alguns
quilômetros á frente, chegar á um asilo de padres e freiras perto de um templo
com uma grande imagem de Buda estranha ao lugar e quatro vezes maior que um ser humano, na volta entramos numa propriedade
pra comer frutas sendo escorraçados pela confusão que fizeram marrecos e
gansos. Pelos caminhos era comum encontrar os Lobinhos, grupo de escoteiros
uniformizados, com tudo que gostaríamos de ter, barracas, mochilas, bussolas
mesmo que a gente não precisasse, facas, lanternas, cantis, botas e até umas
meninas, chegava a dar inveja o material que tinham. O fato de terem um
líder adulto, uniformes e o cair do sol exigia o fim da jornada, sabíamos das
punições que o desbravante passeio poderia causar e ao avista-los saiamos pela
tangente. Comum também era a quantidade de despachos encontrados, a doutrina
católica vigente e as estórias do carrasco enchiam de preconceitos e assombros
tudo que se referia á umbanda, por isso algumas imagens encontradas me causavam
medo. Queixinho ganhou a fama de azarado por ser um dos poucos que mexia nas
oferendas. Sem o respeito merecido e sem medo, se o despacho fosse novo provava
da comida, e chegou até a beber uns goles da bebida que estando quente não
agradou. Uma vez tirou um pequeno punhal, troféu pra ele, ambição de alguns e
amaldiçoado por muitos, não tive coragem de toca-lo e não lembro se foi roubado
ou tomado acho que voltou pra mata.
Nas
incursões rumo á água do Taboão duas dores naquela tarde garoenta, na cabeça do
alto, inicio da descida rumo á bica víamos às dezenas, os montes de toras de
eucalipto empilhados, retalhados no mesmo tamanho, a cena remetia á Daniel
Boone, descobrimos que ali era uma das fronteiras não existentes aos olhos.
Dor, a mata desvirginada maculava o paraíso.
Misturadas,
garoa e terra desnuda presenteavam os congas, kichutes e havaianas com sapatos
de neve de barro, foi com eles que chegamos á aldeota de uma rua só, subimos pelo meio da
rua, em silencio, sem alarde, quase sem detalhar as casas. Éramos uns dez curumins
sem rumo certo num domingo á tarde, Japonês, Queixinho, Dentinho, Lima,
Cardoso, Chipo, Neguinho do 14, acho que o Gordo, outros que não me lembro e
nosso cachorro Dick, fiel confidente e companheiro de muitas jornadas. O alarde
era o próprio passar da tropa, assim o inesperado desfile fez os curiosos e
temerosos moradores saírem ás janelas, íamos sem encarar as pessoas, a tamanha
timidez da tropa impediria qualquer contato, não o dos olhos que em minúsculas
frações de segundos ao encontrar outros declaram infinitas emoções. Só as moças
não despejaram o incriminante apontador olhar da discrimação, deve ter sido
isso, os olhares que trouxeram a zanga ao grupo de rapazes nativos, mesmo sem
gracejos, palavras e gestos sou capaz de jurar. Passamos na direção
oposta á bica e os morros vermelhos agora em maior numero recortados e
redesenhados pelos tratores foram o palco da primitiva batalha sem luta.
Embarrerando uma rota de fuga os nativos agora empunhando estacas, facas e facões
do outro morro gesticulavam suas intenções. Nós com armas de brinquedo
buscávamos a outra rota, a merda é que alguém respondeu com gritos e
levantou epicamente a falsa arma, foi a declaração de guerra que faltava. O que fez nosso grupo voltar foi a lembrança de punição ao não permitido passeio e os nativos que se
avolumavam, já eram por volta de quatro pra um. Graças à condição física
militar adquirida furamos o bloqueio correndo ligeiro por outro morro cheio de
poças d’água, ao pé da mata deflorada começamos a subir enlameados mais a alma
que o corpo. Queixinho vinha na frente com Dick e se desgarrou do grupo, se
prosseguisse pelo caminho do cenáculo estaria salvo, numa manobra errada tentou
voltar á formação, foi quando o pegaram, á uns quarenta metros distantes e uns
trinta de altura, faltava fôlego e força pra conseguirem nos acertar com
pedradas. Estando no alto e municiados de toras caberia revide só que Caolho na
fictícia condição de tenente do grupo sendo o mais velho, desfez a apavorada tropa do
resgate, foi covarde e vergonhoso vê-lo nas mãos do agora inimigo declarado,
apanhando, cercado de facas e nada fazer, por Deus não aconteceu o pior. No
voltar o adiantado da tarde e a lama nos corpos nos rendeu broncas e enxadas
até a chegada sem demora dos nativos com Queixinho amarrado, denunciando o algo
a mais, deu pra ver de perto as facas nas cinturas e que o líder deles era um
mentiroso homem feito, na casa dos vinte e cinco. Descreveu um rosário de inverdades sem direito a defesa
pela fuga, mas confessou sem querer, nossa fama assustava.
O sermão de Seu
Bento doeu mais que qualquer castigo aplicado, na vergonha a lição aprendida e
a covardia me reduziu á dois Lázaros o
insano covarde e o bíblico ressuscitado.